Por Thais Cardoso, do Jornal da USP
No mesmo mês em que a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) cobraram de países medidas firmes para combater a disseminação de informações falsas sobre a covid-19 e que o mundo registrou um milhão de mortos pelo novo coronavírus, um vídeo com diversas afirmações falsas sobre as vacinas desenvolvidas contra essa doença originou a desinformação com mais engajamento no Facebook no Brasil no mês de setembro.
A constatação foi feita em uma análise da União Pró-Vacina (UPVacina), (https://sites.usp.br/iearp/uniao-pro-vacina/), iniciativa que reúne instituições da USP em Ribeirão Preto e outros setores da sociedade, para combater notícias falsas sobre vacinas e gerar conteúdo baseado em evidências científicas. Uma análise anterior, veiculada no início de setembro no Jornal da USP (https://jornal.usp.br/ciencias/campanha-de-desinformacao-sobre-vacina-contra-covid-avanca-com-testes-no-brasil/), já alertava que conteúdos que estavam restritos a grupos antivacina poderiam ganhar larga divulgação por meio de outras redes de desinformação, devido à alta demanda de informação por questões relacionadas à pandemia.
Conteúdo do vídeo
O vídeo de aproximadamente 13 minutos, produzido pelo jornalista e funcionário concursado da Câmara dos Deputados Cláudio Lessa e publicado originalmente no YouTube no dia 8 de setembro, faz entre o 4º e o 10º minuto diversas afirmações falsas e alarmistas sobre a vacina de mRNA contra a covid-19 baseadas em argumentos comprovadamente mentirosos e que circulam há tempos pelos grupos antivacina.
O primeiro deles é uma suposta interferência que elas poderiam causar no material genético de quem as recebe, gerando problemas de saúde “irreversíveis e incuráveis”. Segundo a microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência, Natália Pasternak, já existem vacinas de DNA, semelhantes às de mRNA, seguras e usadas no meio veterinário. Elas não causam mutação porque não se integram ao DNA do animal, apenas possuem fragmentos da sequência genética do vírus dentro de um DNA circular chamado plasmídeo.
“Essa informação genética é utilizada pela célula para produzir uma proteína do vírus de interesse, que será apresentada para o sistema imune. O sistema imune ‘enxerga’ a proteína viral e monta uma resposta imune e memória imunológica. O mesmo princípio vale para a vacina de mRNA, que é de fato uma tecnologia nova, mas não teria como se integrar ao nosso genoma. É apenas informação genética do vírus, que será usada para produzir uma proteína”, diz ela.
O vídeo utiliza outras diversas afirmações falsas utilizadas pelos movimentos antivacina, como a presença de “nanopartículas de controle social” nos imunizantes, que permitiriam monitorar a vida pessoal de qualquer cidadão, e que tudo isso seria parte de um plano do empresário norte-americano Bill Gates para reduzir drasticamente a população mundial.
“Esse tipo de desinformação sobre vacinas não parece vir do movimento antivacina clássico, que atribui falsamente casos de autismo às vacinas. Parece muito mais uma tentativa de grupos com uma agenda político-ideológica, que usam a temática sensível para disseminar teorias da conspiração sobre liberdades individuais. Há, inclusive, vídeos circulando com a notícia falsa de que vacinas são feitas em células de fetos abortados (https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/10/02/perguntas-e-respostas-sobre-vacinas-para-covid-19). Esses conteúdos têm um potencial extremamente danoso para a sociedade, podendo abalar a credibilidade não somente das vacinas contra a covid-19, mas de vacinas como um todo”, afirma Natália.
Diversas agências que checam a veracidade de informações divulgadas nas redes sociais já analisaram as informações do vídeo e também destacaram que são falsas (https://projetocomprova.com.br/publica%C3%A7%C3%B5es/vacinas-contra-a-covid-19-nao-serao-capazes-de-provocar-danos-geneticos-nem-vao-monitorar-a-populacao/)
Repercussão
O material ganhou destaque após a publicação, no dia 24 de setembro, no site Jornal da Cidade Online, que possui mais de 10 milhões de visitas por mês e é alvo de investigações sobre fake news. O responsável pelo portal, José Tolentino, também tem condenações, uma delas expedida no dia 30 de março deste ano, por difamar uma desembargadora do Rio de Janeiro em um de seus conteúdos, e outra por caluniar um desembargador do Rio de Janeiro em 2018.
Outra grande ajuda para amplificar a desinformação foi a publicação, no dia 25 de setembro, do vídeo na página da deputada Bia Kicis (PSL) no Facebook. A deputada, que é investigada em inquérito do STF por disseminação de fake news, não apenas publicou o vídeo como fez uma edição, colocando sua própria logomarca.
Claudio Lessa, autor do vídeo original, também enfrenta processo pela divulgação de fake news ligadas à covid-19 movido pelo governador do Espírito Santo, Renato Casagrande.
A análise
Os pesquisadores da UPVacina analisaram, em setembro, os links relacionados à temática de vacinas com o maior engajamento no Facebook e também os vídeos com maior número de visualizações no YouTube.
Considerando a postagem na página de Bia Kicis e a matéria do Jornal da Cidade Online, as interações chegam a 232,3 mil, entre curtidas, comentários e compartilhamentos no Facebook. Ao analisarmos somente os compartilhamentos, ou seja, o quanto o conteúdo viralizou, o post e a matéria sobre o vídeo, juntos, foram compartilhados por 79,7 mil usuários, enquanto as outras sete notícias de maior engajamento no mesmo mês, em conjunto, tiveram 79,6 mil compartilhamentos.
Até o dia 30 de setembro, mais de 180 mil pessoas haviam visualizado a peça no YouTube. Outras 350 mil viram a peça na página da deputada no Facebook. Se essas duas peças fossem apenas um vídeo no YouTube, teriam atingido um total de 530 mil visualizações, superando o vídeo mais visto nessa plataforma com conteúdo relacionado a vacinas no mês de setembro, que teve 500 mil visualizações.
“Os dados levantados demonstram que a desinformação contra as vacinas para a covid-19, impulsionada pela demanda de conteúdos referentes à pandemia, extrapolou o nicho dos grupos radicais que são contra as vacinas, atingindo agora novas proporções. Para se ter uma ideia, os grupos antivacina demorariam pelo menos 13 anos para conseguir essa quantidade de compartilhamento em suas publicações caso mantivessem o ritmo de postagens da análise divulgada em agosto. A tendência é que essas campanhas de desinformação continuem ocorrendo e cresçam com a proximidade do lançamento das vacinas”, comenta o analista de comunicação do Instituto de Estudos Avançados da USP, João Rafael.
O Jornal da Cidade Online atualizou o texto em seu site no dia 29 de setembro, mas manteve o vídeo original produzido por Cláudio Lessa. Até a publicação desta matéria, a deputada Bia Kicis ainda não havia excluído a postagem, mesmo com a marcação de conteúdo falso feita pelo Facebook também no dia 29.
“Essas correções ou avisos de conteúdo falso, que são colocados vários dias após a publicação da desinformação, acabam tendo, na prática, pouca ou nenhuma efetividade, pois nesse tempo o conteúdo já foi amplamente disseminado entre os usuários das plataformas. É urgente que as grandes empresas de tecnologia reforcem suas políticas de combate à desinformação, principalmente no momento em que a sociedade enfrenta uma pandemia”, comenta João.
No caso do vídeo original no YouTube, no período da análise, ele seguiu disponível sem o aviso que é colocado pela plataforma quando há abordagem de temas relacionados à covid-19. O conteúdo ainda é monetizado, ou seja, permite que o YouTube e o autor lucrem com propagandas de diversas empresas, entre elas oito grandes marcas de destaque no Brasil: Mercado Livre, Samsung, Carrefour, MRV, Bradesco, iFood, Gomes da Costa e Natura.
(Foto: reprodução)
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